Encontros e Reencontros
por Loredana De Stauber
Estou com quase 88 anos, moro no Residencial da SBA, bonito e acolhedor, e tenho uma saúde razoavelmente boa. Poderia sentir-me contente se não sentisse tanto a falta da proximidade com minha filha.
No fim de 2010 ela havia deixado os USA, seu país de adoção, para morar comigo no Brasil. Única nossa parente próxima, minha irmã Nelly, morava em Trieste, na Itália, longe ela também.
Eu, com 80 anos, sentia-me ainda bastante jovem, mas minha filha, Emilia estava preocupada que eu estivesse sozinha, sem família por perto. E ela queria me ajudar.
Ter minha filha perto de mim, pela primeira vez por um longo período de convivência desde que ela cumpriu os 17 anos permitiu-nos, a parte alguma incompreensão inicial, de entender-nos e aproximar-nos, como nunca antes.
Quando depois de dois anos e meio ela voltou aos Estados Unidos por razão de saúde e de trabalho mais um conjunto de outros problemas, era tanto meu desejo de reconstruir o que eu chamava de uma pequena família, pois minha irmã continuava longe, que decidi morar com ela em Los Angeles.
Ela não estava bem e precisava das curas de seus médicos e eu pensava poder ajudá-la. Emilia me fez presentes os riscos, mas me acompanhou em meu desejo, entendendo que eu enfrentaria os desafios que se apresentassem com prazer e alegria.
Fizemos uma previsão de nossas entradas mensais e das despesas. Vendi o apartamento onde morava em São Paulo e Emilia preparou tudo para minha chegada em LA no fim de agosto de 2014. Ela havia alugado um lindo apartamento com uma grande sala e uma janela que se estendia por toda sua largura, de onde se via o verde variegado das folhas das arvores em baixo. Aos dois lados da sala abriam-se dois quartos, cada um com seu banheiro. Uma pequena cozinha era parte da sala e se abria nela com um balcão.
Do meu lado eu pensava contribuir às despesas cotidianas com minha aposentadoria de professora da USP e com outra italiana. Pensava também de ajudar em casa com trabalhos simples do dia a dia: regar as plantas diante da janela, limpar a mesa de trabalho, cozinhar alguma coisa daquelas poucas que eu sabia fazer e de que Emilia gostava.
No março seguinte, mal havíamos apresentado os documentos necessários para eu obter o green card, eu caí uma manhã na cozinha, e no esforço para me levantar tive um infarto. Pensei que não fosse nada grave, entretanto Emilia logo apareceu, entendeu que havia algo errado, chamou uma ambulância e depois de meia hora eu estava sendo examinada por vários médicos no hospital mais próximo. Recuperei-me após alguns dias, mas os médicos, vista minha idade, estavam preocupados e não queriam me dar alta.
Sem plano de saúde a conta era de mais ou menos 70 mil dólares… Estava tão assustada de acabar nossas economias que, apesar de meu inglês limitadíssimo, consegui dizer bem claro que eu sairia imediatamente de lá, para não ter outro infarto. Eu e minha filha tivemos que nos responsabilizar por escrito, como os médicos pediram, para eles e o hospital ficarem isentos de responsabilidade em caso de recaída.
Recomeçamos nossa rotina cotidiana. Um período bastante tranquilo, não obstante os muitos controles médicos que os médicos particulares achavam necessários e o grande trabalho burocrático para organizar minha documentação americana e tomar conta das despesas hospitalares, conseguindo alguns descontos. Trabalho que recaiu sobre Emilia, mas que eu acompanhei.
Até que, ao início de novembro, tive outra queda. Voltei ao mesmo hospital. Desta vez tinha quebrado o fêmur e precisei de uma prótese. O infarto precedente e outros problemas de saúde ainda preocupavam os médicos do hospital, que pediram vários exames antes da cirurgia. Já com o green card e um seguro de saúde, estava mais tranquila. Mas, até poder caminhar, permaneci numa casa de repouso, a primeira semana na cama, em seguida em cadeira de rodas, no fim com um andador. Não conseguia dormir, nem me acostumar à comida. Emilia trazia comidinhas mais gostosas e variadas para mim, mas nem sempre eu conseguia comer.
Voltando para casa, outros problemas. Precisava de ajuda para tomar banho e de sessões de fisioterapia em domicílio, felizmente pagas pelo seguro. Para o restante era Emilia a cuidar de mim, com a ajuda semanal de uma faxineira.
Sentia-me inválida e incapaz, mas com os cuidados de Emilia, melhorei rapidamente. No entanto, uma depois da outra apareciam contas dos exames médicos que o seguro pagava só em parte. Sem Medicare, descobrimos que muitas despesas estavam a nosso cargo.
Continuava a físio, agora num Instituto duas ou três vezes por semana. Emilia me acompanhava, conversava com a fisioterapeuta, me ajudava com os exercícios em casa. Pouco a pouco consegui uma relativa independência.
Com as despesas sempre maiores e a minha aposentadoria brasileira menos consistente pelo câmbio desfavorável, ficou logo óbvio que mesmo sem outras hospitalizações em breve ficaríamos sem dinheiro para viver. Única solução possível, eu voltar ao Brasil. Mantivera meu seguro de saúde brasileiro, um convênio com a USP descontado na aposentadoria.
Antes de deixar São Paulo dois anos antes, com amigos havia visitado algumas casas de repouso. Gostei da ELITE, uma casa pequena, aberta aos dois lados, com algumas plantas que tornavam o ambiente mais alegre. Já então pensava que para mim uma casa de repouso poderia ser uma solução pois as minhas forças minguavam e não me sentia em condições de continuar morando sozinha num apartamento.
Agora, dos EUA, com Emilia, fomos checar na Internet. As Casas que conseguimos ver pareciam todas iguais e com preços parecidos. Mas o problema maior, a nosso ver, era a documentação médica brasileira exigida por todas.
Contatei meu médico do HU que me atendera por muitos anos e com quem estava em contato via e-mail e ele respondeu que poderia sim certificar as minhas condições de saúde, mas precisaria ver-me, visitar-me de novo, pedir alguns exames visto o infarto e a cirurgia do fêmur. Seriam necessárias semanas.
No aguardo poderia ir para casa de uma amiga. A Fernande poderia me hospedar por um breve período. Mas Emilia achava que para mim seria um esforço grande demais após o cansaço da longa viagem de volta, pois, sem dúvida, eu acabaria por ajudar em casa, fazer compras, etc. Agora, no fim de uma reabilitação de seis meses depois da prótese, eu precisava ter segurança e cuidados médicos.
Na internet encontramos uma casa de repouso, a Santa Catarina, que funcionava como um hotel e podia-me receber com documentação médica americana. Poderia permanecer ali um mês ou dois, o tempo para encontrar uma residência permanente e menos cara, onde ter os cuidados médicos necessários.
Como Emilia havia previsto, precisei descansar bastante antes de começar as visitas as casas de repouso. Visitei várias, em geral localizadas em prédios de muitos andares com uma área de lazer relativamente pequena. Os preços não eram muito diferentes para um quarto bastante grande, banheiro privativo e assistência médica in loco. Precisava ver outros diferenciais.
Um casal de amigos queridos com experiência em assistir amigos idosos, estavam dispostos a me ajudar para alugar um pequeno apartamento. Alternativa menos custosa. Mas eu não me sentia mais em condição de morar sozinha, sem ajuda médica por perto.
Quando visitei o Residencial da SBA que havia deixado por último, – pois na internet os preços pareciam iguais aos da Santa Catarina e para algumas residências até maiores, fiquei encantada. Era um vilarejo com alamedas arborizadas, um pequeno lago, a possibilidade de caminhar num lugar protegido do tumulto e dos perigos de São Paulo. Oferecia tudo que eu precisava. E havia vários tipos de residências com preços diferentes. Precisava encontrar uma menos cara e que me permitisse guardar tudo o que Emilia tinha posto nas minhas malas e as malas também.
Queria poder permanecer e não mudar outra vez. Estava cansada de mudanças. Voltei algumas vezes, pois poderiam aparecer outras residências vazias, se eu tivesse paciência e aguardasse. Até que encontrei um apartamentozinho de dois ambientes mais o banheiro, com um grande armário e um pequeno jardim na frente da janela. Custava um pouco mais do que eu havia planejado gastar, mas consegui tratar o preço que diminuiu um pouco.
Ainda um pouco assustada, decidi ficar. Emilia tranquilizou-me e ajudou-me a organizar minha permanência ali tomando os contatos necessários. Devia também comprar o indispensável para poder morar e para isso precisei da colaboração de nossos amigos, mais uma vez a Fernande, Werter, Luís Carlos.
Antes de poder entrar tive de passar por uma avaliação médica demorada, mostrar todos os certificados que havia trazido, desde aquele de meu médico do HU, aos certificados americanos, aos do médico do Santa Catarina e do Hospital onde havia feito alguns exames naquele período. Fui aceita.
Arrumei outra vez minhas malas e me transferi para cá com algum receio e muita esperança de ter feito uma boa escolha.
Permanecia a mágoa profunda por estar longe da Emilia. Lembrava o período de nossa convivência. Com todos seus problemas, aparecia-me luminoso, com muitos momentos felizes e entendia que nunca mais teria algo igual.
Perda grande e dolorosa. Mas precisava ir em frente, ter a coragem de mudar outra vez vida e pensamentos. A experiência lembrava-me que sempre ao mudar acabamos por encontrar alguma compensação.
Logo dei-me conta que no Residencial que escolhera havia muitas coisas em termos de assistência e serviços, que me ajudariam no período difícil do envelhecimento, e poderiam aliviar a dor da perda. Mas – repetia para mim mesma – devia olhar para frente e não atrás.
O contato com Emilia continuaria, por telefone, e-mail e pelo Skype. Ver-se no Skype è quase como estar juntas, presentes. Ela continuaria a se interessar pela minha saúde, me ofereceria ajuda. Procuraria contatos com meus médicos. Nunca perderia o apoio dela. Eu sempre me sentiria perto dela e eu também, pelo pouco que podia fazer, a apoiaria.
Mas o que esse Residencial tinha além da localização privilegiada e aconchegante que desde a primeira visita me encantara?
Depois da experiência do Santa Catarina regido por freiras, eram os moradores e a falta de pressões que logo notei. Aqui os moradores são de diferentes origens, nacionalidades, línguas e religiões, cada um deles carrega experiências e lembranças diferentes. Sentia que eu também podia ser diferente, a meu modo, sem me sentir isolada, pois o ambiente não exerce pressão, nem religiosa nem de outro tipo. As diferenças são aceitas e naturais. Com algumas reservas, financeiras, culturais e até mesmo de saúde, que explicarei mais adiante.
Cada semana, alternadamente sábado ou domingo, naquele momento, eram celebrados uma missa católica e um culto ecumênico com um Pastor, o Pastor Nino, um homem cuja fé se comunicava aos presentes, e que todos apreciávamos, louvando com ele ao Todo Poderoso. Agora o Pastor teve de se afastar por motivos de saúde e nós fomos privados da serenidade que seus cultos ofereciam. Há um novo Pastor, mas é preciso se acostumar ao jeito dele.
Além disso há serviços em várias áreas. Os mais importantes na área de saúde, com médicos geriatras que também tem outras especializações. O meu médico no início era o dr. Jader, geriatra e também cardiologista como eu precisava. Agora pela reestruturação da Equipe Médica desse Residencial, não terei mais seu precioso atendimento, a não ser que ele aceite de ser meu médico particular. Os novos médicos ainda não nos conhecem o suficiente para transmitir a segurança de que precisamos.
Os médicos revezam-se nos fins de semana e nos feriados, os enfermeiros e atendentes de enfermagem continuam atendendo nos alojamentos dia e noite.
Há acompanhamento a consultas com médicos especialistas e a laboratórios para exames clínicos. Uma farmácia interna fornece os remédios que os moradores não conseguem comprar eles mesmos com descontos.
Cursos gratuitos de memória, de marcha, de artesanato ajudam a exercitar diversas habilidades.
Encontros de grupo com uma psicóloga facilitam a aceitação da realidade de perdas própria da idade e permitem a confrontação entre as diferentes visões de vida dos moradores e das cuidadoras que convivem conosco.
Palestras de arte, música clássica e popular brasileira, de alimentação saudável e memória mantém viva a faculdade de nos abrirmos a novos conhecimentos ou de atualizar o que já sabemos.
Sessões pagas de fisioterapia e acupuntura e uma dentista que atende duas vezes por semana completam a variedade dos cuidados sanitários a que podemos ter acesso in loco. Se necessário, podemos pedir coleta para exames de sangue e raios X em domicílio.
Duas áreas hospitalares atendem moradores que precisam de cuidados médicos e de enfermagem mais intensos e frequentes.
A assistência na área da saúde é muito importante, talvez a mais importante para os idosos. Mas como sempre dizia o dr. Jader, também a diversão, o fazer algo de que gostamos e que nos agrada ajuda a ter saúde. É um ensinamento que passei também para pessoas queridas, particularmente minha filha e minha irmã.
Entre as possibilidades de prazer e diversão podemos dispor de lugares como a cafeteria, os cursos de que gostamos e as saídas a lugares bonitos.
A cafeteria é um lugar muito agradável. Tem mesinhas externas de onde se pode ver o verde das árvores e o lago, e mesas internas onde nos refugiamos quando o sol é quente demais ou tem frio e chuva. Ali podemos tomar café expresso, chá, chocolate e outras guloseimas, e podemos receber visitas ou convidar amigos.
Ofertas quase gratuitas de entretenimento cultural, com acompanhamento para visitas a museus, exposições, concertos de músicas clássicas, ou para passeios e outras diversões são oferecidas pelo menos uma vez por mês.
Temos serviço de lavanderia e de limpeza dos quartos e dos banheiros uma vez por semana, ou diariamente uma limpeza mais rápida para quem não tem cuidadora. Se solicitadas as copeiras servem as refeições nos quartos.
Para cuidados pessoais temos serviços pagos de cabelereira, manicure, pedóloga.
Toda semana um carro ou dois conforme a procura, acompanham os moradores interessados num hipermercado ao qual são agregados uma farmácia, uma tinturaria, outras lojas, restaurantes e cafeterias.
Os carros da casa atendem para irmos a consultas médicas ou a exames de laboratório. No caso que não haja disponibilidade, há taxi recomendados que podem atender e oferecer ajuda e acompanhamento aos moradores que precisam.
Grupos de voluntários organizam outros entretenimentos, festas, reuniões musicais, filmes e seriados, sem que isso pese no orçamento da organização, e nas contas a serem pagas mensalmente por nós.
Naturalmente esta é uma descrição idealizada, lógico que a prática tem sombras.
Mas em geral, por sua localização privilegiada e pela organização, não apenas este é um Residencial bonito, onde podemos sentir-nos bastante livres e ativos, e no lugar onde moramos, podemos dispor de todos os serviços e a assistência que nos ajudam a enfrentar os desafios e as necessidades da idade.
A idade… não pensava que fosse assim, uma debilitação progressiva do corpo ou da mente, ou dos dois… e isso me assusta um pouco, mesmo que eu consiga por enquanto me recuperar com bastante facilidade.
No início de 2017 caí, fui hospitalizada durante um mês, tive momentos de esquecimento, confusão mental entre sonhos e realidade, e muitas dores. Dei-me conta que o que subjetivamente consideramos nossa lucidez não corresponde à impressão que os outros tem de nós ao perceber nossa confusão momentânea.
Por um período precisei de remédios fortes cujos efeitos alteravam a minha personalidade, o que se refletia na opinião dos outros a meu respeito e me levou a refletir melhor sobre mim e sobre os outros.
Tive cuidadoras 24 horas por dia limitando minha liberdade e a possibilidade de me recolher em meditação…
Usava cadeira de rodas e a cuidadora levava-me onde precisava ir. De certo modo, era confortável, mas significava uma dependência total que eu não queria pelo resto da vida. Menos ainda se quem me atendia fosse acostumada a tratar o paciente como criancinha dirigindo-se a ele com diminutivos carinhosos e repetidos. Formas afetivas, mas pouco apropriadas para tratar com quem ainda raciocina. De fato, vi muitas senhoras de idade estremecer diante dessas formas de carinho. Mas poucas conseguem reagir sem ofender e sem se sentir diminuídas.
Procurando melhorar fiz fisioterapia, muitos exercícios, e aos poucos recuperei as forças e a liberdade que posso ter, mas de vez em quando reapareciam problemas: pressão alta, dores, dificuldade de andar, respiração ofegante.
Parecia-me que os remédios melhores fossem os exercícios, mas não eram suficientes.
De vez em quando lembrava-me dos médicos do hospital americano que queriam que eu fizesse um cateterismo.
Os problemas repetiram-se e meu coração falhou repetidamente, fui hospitalizada outra vez, tive outros infartos, fiz o tal cateterismo e foram encontrados quatro pontos de interrupção na artéria. Agora o coração é novo, como diz o cardiologista que me atendeu no hospital. A respiração e a pressão arterial parecem estabilizadas.
Entretanto mesmo tendo voltado ao meu apartamento, ainda preciso de duas cuidadoras que se revezam a cada dia e devo evitar qualquer esforço.
Estas experiências fizeram-me considerar com olhar diferente não só o parecer dos médicos, mas principalmente as pessoas ao meu redor. Aqueles com quem prefiro me relacionar e conversar, mas também os outros que quase non conseguem falar e que parecem não entender mais nada.
Parecem, mas será que é assim? preciso refletir mais sobre os pensamentos e as percepções destas pessoas. E não apenas isso, mas aqueles outros com quem gosto de conversar, como realmente são, como vivem e enfrentam os mesmos problemas meus, não apenas no dia a dia, mas num nível mais profundo que diz respeito ao que nos espera, a vida que temos e que pode mudar ou acabar sem aviso prévio.
Entendo que não há um único padrão nem previsões válidas. Tudo pode acontecer. E cada um resolve a seu modo os desafios que tem à frente. São coisas de que geralmente não se fala. mas que se refletem em comportamentos e atitudes até mesmo involuntários.
Há quem mal pode andar, mas anda, sozinho pela maior parte do tempo, ou em companhia de amigos, pedindo ajuda só de vez em quando, para atravessar um espaço, subir um morro, ou no restaurante para se servir e transportar os pratos com comida sem que caiam. E há quem os deixa cair…
Alguns se queixam das dores, só pensam no passado quando eram mais fortes e sadios, recusando o esforço necessário para obter mais saúde e mobilidade. Outros olham para frente e pretendem viver da melhor forma possível nas suas condições. Os costumes que mudam tornam difícil o entendimento dos que já viveram muitos anos, sempre com as mesmas certezas apreendidas no passado. Quase impossível é aceitar as mudanças e as transformações se nunca se fez isso ao longo da vida.
Às vezes pergunto-me onde os meus esforços vão me levar. Gostaria de ficar sozinha, sem depender de ninguém. Mas, se um dia ou outro vou cair, o que pode me acontecer? Posso perder o contato com a realidade, além da independência. E me arrepender da ousadia. Ou vou ter a sorte de conseguir ficar entre aqueles que até o fim mantém independência e liberdade?
Aqui, no SBA, são tantas as pessoas da minha idade ou até de noventa ou mais anos que, utilizando os serviços oferecidos, e em alguns casos usando um andador ou uma bengala, conseguem permanecer sozinhas, sem ajuda desnecessária. Há risco, mas eu acredito que tendo atenção, cuidado, e não querendo fazer mais do que podemos, o risco vale a pena. E eu o que posso e não posso fazer nas minhas condições? Por enquanto não há resposta, se não fazer o que o médico manda.
Uma vez por mês a dra. Daniela, psicóloga da casa, oferece um encontro com um tema sobre a nossa realidade de idosos e cada um é convidado a expor sua experiência. É interessante ouvir como outros vivem o envelhecimento, como enfrentam os desafios comuns a todos, quais são as satisfações, as alegrias, as queixas, os motivos que outros alegam para estresse, depressão, frustração. Nem todos gostam de se expor, alguém expõe suas frustrações, outros afirmam não ter tido frustração nenhuma e uma vida sempre feliz. O confronto leva à reflexão e ensina a maturar, como diz a Daniela.
As mulheres as vezes se queixam das rugas e da aparência. Sobre a tristeza que temos a ver as rugas no rosto, sobre o tempo que passa inexorável, a Daniela nos deu uns bonitos versos escritos por ela.
A maioria mais lamenta a solidão por falta de amor, o esquecimento ou a ausência de parentes próximos, doenças graves ou progressivas, limitações de movimento, necessidade de cuidados não só de dia, mas de noite, com a perda da liberdade e da intimidade pessoal.
Visto no quadro geral, cada caso, cada problema aparece em sua relatividade. Nós, eu e as pessoas com quem prefiro me relacionar, e com quem posso conversar, apesar de termos algumas limitações mais ou menos sérias, podemos nos considerar afortunados. Chegamos a uma idade avançada bastante lúcidos, podemos decidir algumas coisas para nossas necessidades. Podemos não apenas trocar ideias, mas eventualmente ajudar alguém.
Não somos aqueles coitados que aos poucos estão perdendo a memória, e repetem as mesmas coisas inúmeras vezes, ou que não tem mais nenhuma vontade de viver. Tampouco somos aqueles que, sentados numa cadeira de rodas, recebem a comida na boca e parecem não entender mais nada, nem os que choram e gritam, no restaurante ou no silêncio da noite. Nem somos aqueles que o dia inteiro andam pelas alamedas do jardim e de improviso param e perguntam onde estão, onde fica o restaurante onde comem todos os dias e a casa onde moram, ou aqueles outros que cada dia te abraçam perguntando se você acabou de chegar.
Mas realmente quem são eles e quem somos nós? Penso numa moradora que anda o tempo todo pelas alamedas do Residencial e parece esquecer as coisas corriqueiras ao seu redor. Todos pensam que ela tenha Alzheimer. Eu não sei o que pensar.
Lembro de quando acompanhava ao médico o pai da minha filha e o médico me pediu autorização para fazer-lhe um exame de memória em vista de uma possível interdição, pois ele parecia não ter memória nenhuma e não podia ficar sozinho horas a fio. Não lembrava o dia nem o ano em que estávamos, não sabia onde morava, nem com quem, não conseguia fazer os cálculos mais simples. E pior, não lembrava de apagar o gás, nem o que não se pode pôr no forno micro-ondas. Uma vez colocou o cartão do leite e destruiu o forno.
O que é, é Alzheimer? Perguntei. O médico respondeu: – Não posso diagnosticar isso. O que eu posso afirmar e escrever é que ele tem uma forma de demência.
Então há várias formas de demência? E o mal de Alzheimer é apenas uma delas? Se para o médico é assim, ainda menos o leigo pode afirmar algo sobre essa doença, sem medo de errar.
Numa festa, a senhora que anda pelos jardins sem parar, sentou-se perto de mim. Estava linda, num vestido de seda que realçava seu corpo bonito. Cumprimentei-a e ela sorriu – é festa – disse – precisa se arrumar – com meu marido eu sempre estava arrumada, ele gostava – Seu marido era italiano – perguntei, vendo o nome no bilhete que marcava seu lugar. – Era – ela respondeu – Um italiano simpático, gostava de festas, era sempre alegre –.
Eu insistia com as perguntas porque nunca a havia ouvido falar durante tanto tempo, sem perder o rumo e me perguntava o que realmente ela tinha, qual era a doença de que sofria. Ela, Gerda, me contou também que havia sido atleta, que outrora corria na Maratona de São Silvestre e outras coisas. Discursos sensatos de pessoa normal.
Numa conferência sobre o Alzheimer, Daniela, a psicóloga, disse que a fisioterapia podia ajudar a prevenir e curar esta doença assustadora.
Perguntei a dois fisioterapeutas e eles me explicaram, mais ou menos da mesma forma e com palavras semelhantes, o que a fisioterapia faz: a fisioterapia age sobre a circulação e como a circulação interessa todo o corpo, inclusive a cabeça, isso pode ajudar o processo cognitivo. Além disso o fisioterapeuta dá instruções do que fazer na sequência dos movimentos e assim ajuda a fortalecer o processo de memorização ligado ao presente. Tudo muito simples.
Porém, eu fico com outras dúvidas. Os dois fisioterapeutas, pela descrição, reconheceram a pessoa de quem eu falava e os dois afirmaram que ela tem Alzheimer.
Explicaram-me também que tal doença atinge a memória do presente, não aquela do passado. Gerda havia-me falado sobretudo do passado, se bem que inserido no presente. Mas havia construído frases bastante longas que requerem alguma ligação sintática. E isso durante quase meia hora. Sem se atrapalhar. Foi normal para ela ou foi um momento de superação? O que motivou essa superação?
Eu continuo a não entender o funcionamento da nossa cabeça.
Penso em outros casos de mudança e de superação. Casos diferentes, certo, mas que mostram nossas possibilidades. As que temos e as que poderíamos ter.
Penso no Alberto, por exemplo. Comparado à maioria dos moradores deste Residencial, ele é jovem, tem apenas 65 anos, mas quando o vi a primeira vez assustei-me. Todo torto, caminhava com evidente dificuldade. Ofereci-lhe ajuda. A fala dele também parecia confusa e atrapalhada, mas a mente estava em alerta. Não recusou minha ajuda, mas percebendo o meu sotaque, disse em italiano – lei guarda i miei occhi, sono azzurri – eu entendi, e sorrindo respondi – sì sono bellissimi – tutti lo dicono – retrucou ele.
Realmente seus olhos eram de um azul que dificilmente se vê numa pessoa não mais jovem, eram olhos claros, límpidos, o espelho de uma alma pura.
Ele queria desviar minha atenção da minoração de seu corpo e de uma eventual demonstração de compaixão. E o fez com muito jeito e elegância.
Entretanto não é compaixão o que ele me inspira, é admiração. Pergunto-me como seria eu no lugar dele, seria capaz de afastar a compaixão dos outros com a naturalidade elegante com que ele o fez, ou ficaria tristonha no meu cantinho, aguardando alguma consolação, mesmo sabendo que a dor afastada de um lado em algum momento aparece num outro lado.
Uma vez Alberto contou-me a sua história: era engenheiro e trabalhava na praia. Uma noite, subindo a Serra do Mar, enquanto dirigia cansado, cochilou na direção do carro e acabou debaixo de um caminhão, prensado entre os destroços. Ficou em coma ou em condição intermédia por oito ou nove meses, até voltar à normalidade. Uma normalidade limitada, mas que lhe permite ficar sozinho. Ele me contou que no início os médicos não acreditavam na sua possibilidade de recuperação. Diziam que no melhor dos casos ele poderia ter uma vida vegetativa. Mas Alberto recuperou a consciência e parte dos movimentos. Quase um milagre. Foram as rezas da mãe que o assistiu dia e noite? Isso é o que ele pensa. Mas de certo, além da força de vontade dele para sair do buraco, foram o amor e os cuidados dela a permitir-lhe a recuperação.
Agora, falecida a mãe, está num apartamento desse Residencial. Tem problemas de coluna e anda com dificuldade, todo dia o carrinho elétrico que transporta os moradores vai buscá-lo, o motorista desce a seu apartamento para ajudá-lo a subir até o carrinho. Ele usa uma bengala e procura subir sozinho. A ajuda do motorista apenas faz com que se sinta mais seguro e protegido. Ao chegar ao restaurante, o motorista desce com ele e vai até o balcão onde a comida é servida.
Uma vez Alberto quis dispensar o motorista na porta do restaurante, pensando que poderia continuar sozinho, mas tropeçou e se uma das copeira não fosse pronta a ajuda-lo, poderia cair. Chegando ao balcão, escolhe o que quer comer. Uma das copeiras leva sua bandeja e o acompanha à mesa, ele se senta e come sozinho, isto é, sem precisar de outrem. Conversa com os vizinhos, curioso da vida de pessoas diferentes, amigos, visitas, cuidadoras, com preferência para pessoas inteligentes e discretas que saibam comunicar com ele e não façam perguntas inúteis. Para voltar para casa, mais uma vez aguarda o acompanhamento do motorista de turno.
Com certa frequência participa de alguma atividade, das reuniões ecumênicas com o Pastor Nino ou das festas, sempre procurando aquele mínimo de ajuda de que precisa.
Ao voltar do hospital, depois de um mês de ausência, entre os que reencontrei, ele foi o único morador que havia melhorado, tinha um pouco menos dificuldade de caminhar, estava um pouco mais ereto e seguro de si. A fala também tinha ficado mais clara e fácil de entender. Mas o problema de coluna não está resolvido e ele pode facilmente perder o equilíbrio, como vi hoje quando a copeira o segurava com uma mão e com outra procurava levar a bandeja da comida. Ele tropeçou. A copeira conseguiu segurá-lo sem deixar cair a bandeja. Todos ficamos assustados.
Alberto é um exemplo não apenas de força de vontade, mas do que nos permite a assistência que temos aqui, quero dizer de ficar sozinhos, livres de cuidadores que, mesmo nos ajudando, nos limitam. Aqui, neste lugar, assistidos e protegidos, podemos continuar quase como se ainda estivéssemos em nossas casas. Com muitas mordomias a mais.
Uma vez na animação de uma festa Alberto deixou passar a hora, o carrinho já tinha parado o serviço, e ele estava muito preocupado sem saber como poderia sozinho atravessar o espaço até sua moradia. Eu não podia tomar a responsabilidade de acompanhá-lo. Com meu andador eu me sentia segura, mas se eu precisasse segurá-lo? Poderíamos cair os dois.
Foi a Coordenadora do Atendimento, a dona Henriqueta, com sua atenção costumeira, a perceber nossa hesitação e a acompanhá-lo até seu apartamento. Nunca falta ajuda.
O Alberto para mim é o mais notável entre os moradores, aquele que, apesar do gravíssimo problema, conseguiu superar a si mesmo e continua a se esforçar para melhorar mais um pouco. Que não se queixa, mas ao contrário agradece a Deus pela vida quase independente que consegue levar.
Pergunto-me como seria eu no lugar dele. Não sei se seria capaz de me sentir afortunada como ele diz que é pelos resultados obtidos, e não lamentar o destino pelo que me tirou. Talvez ficaria choramingando pelo faltamento, como diz a Daniela, sem considerar o apreendimento , ou o amoramento que a vida me sugere e proporciona com dor ou através da dor.
Um dia no culto do Pastor Nino estávamos cantando um hino lindo:
Porque Dele, por Ele, para Ele são todas as coisas, a Ele a glória, a Ele a glória para sempre, amém.
As últimas notas do hino e as palavras ainda ressoavam, e, sentindo uma presença, eu me virei. Atrás de mim, o Alberto concentrado no canto parecia iluminado, o azul claro de seus olhos brilhava e ele estava sorrindo.
Sorrindo ao que – perguntei-me – mas sem dúvida ele sorria pela alegria de cantar junto aos outros numa comunhão de solidariedade e de alegria compartilhada.
Talvez, o problema da superação não está ligado só a nós e à nossa pequena realidade pessoal, mas está sugerindo algo maior, a solidariedade com o outro. O amor para todos os que amamos e os que estão próximos de nós, sem excluir o intuito um pouco egoístico de que outros também me ofereçam alguma solidariedade.
Tal solidariedade aqui nesse Residencial não é rara, muitos são capazes deste sentimento. E as pessoas mais simples, cuidadoras, copeiras, faxineiras às vezes oferecem solidariedade e afeto. Para não falar do pessoal da saúde, médicos, enfermeiros, atendentes. Muitas vezes eles agem como amigos e conselheiros. E os moradores, também se ajudam uns aos outros, criam-se ligações afetivas. As sombras de que falei acima são excepções.
Penso no Geraldo. O Geraldo se foi. Mas até que esteve aqui entre nós, ensinou-nos muitas coisas. Nós tomávamos juntos o café da manhã, ele estava sentado na minha frente e falávamos do dia a dia.
Geraldo tinha o dom de perceber os assuntos de que podia falar com cada um de seus interlocutores. Comigo às vezes ele falava do TAO, das reuniões das quais participava uma vez por mês em Jundiaí, com um mestre chinês. Eu dizia que conhecia um pouco o TAO, porque minha filha havia-me ensinado algo através do I CHING. Ele me explicava que antes de tudo precisávamos nos desprender das coisas, chegar ao vazio da mente para não sermos atingidos por dores e frustrações.
Para mim a concentração e o vazio da mente eram palavras vazias. Algo a que eu não conseguia chegar. Não sábia o quanto ele tinha razão, o quanto a sugestão servia para mim e não só para ele.
Ele falava de si, estava casado e a esposa, com mal de Alzheimer, ciumentíssima dele, parecia dificultar sua vida. Às vezes ele se queixava das investidas dela, sua pressão subia e ele chegava a se sentir mal. Então procurava se afastar dela um ou mais dias, o que não era difícil por ela estar internada na ala hospitalar do Residencial onde ele ia busca-la cada dia para os dois almoçarem um ao lado do outro. Se ele não ia, a esposa ficava no hospital. Mas isso raramente acontecia. Eu falava da minha experiência conjugal e da necessidade que tivera de me afastar de vez do meu marido para não ficar doente eu mesma.
Depois, uma vez numa festa, vi o Geraldo e a esposa dançarem juntos com gestos de uma ternura que só poderia vir de um grande sentimento de amor. Comecei a entender o quanto eles ainda se amavam e entendi por que o Geraldo não desistia de ajudá-la.
Mas só depois da partida dele, eu soube algo mais.
Geraldo estava nesse residencial há dois anos. Transferiu-se aqui de Jundiaí onde morava, após receber dos médicos o diagnóstico de que, com os cuidados adequados, só poderia sobreviver um ano. Este ano ele dedicou-o à esposa. Ela estava internada num outro residencial, do qual não gostava. Aqui, no SBA, trabalhava a filha, que sugeriu a transferência. Assim os dois vieram para cá, ela na ala hospitalar, ele num quarto aqui, no Palle, onde eu também moro.
Com os cuidados e a assistência recebidos ele conseguiu sobreviver não um, mas dois anos, e nesse tempo ajudou a esposa, dia após dia, com amor e dedicação, sem, porém, negligenciar outras pessoas a seu redor, que, de alguma forma, precisavam de ajuda, entre elas, eu e a Marina.
Antes do Natal do ano passado, ofereceram-lhe um trabalho, o de representar o Papai Noel para grupos de crianças. E ele fez isso com muito amor. A esposa chegou a tratá-lo de palhaço pela sua atuação, mas isso não o fez desistir. As crianças de algumas creches chamavam-no de Bom Velhinho e corriam para seus braços sentindo o carinho com que eram abraçadas. Isso o recompensava.
Naturalmente a oferta havia também um interesse comercial e o Geraldo foi levado para lojas e shoppings, onde, sempre com a mesma atitude carinhosa, conquistava todas as crianças, não apenas as carentes.
Sem parecer, ele me ensinou alguns princípios do TAO que me ajudaram a entender a minha filha, e a mudança que ela conseguira obter em sua própria personalidade.
Quando soube que ele foi para o além, eu chorei muito, como se tivesse perdido uma parte de mim. Estava na sacada do meu quarto no hospital e olhei para o céu, sem intenção nenhuma. Ali, no límpido azul, vi um pássaro voando e me pareceu ouvir uma voz dizendo-me que o Geraldo estava no céu, no céu do TAO, onde tudo muda constantemente. Esta é a lei do TAO, repetiu, isso vale para Emilia também. E outra vez repetiu, vale para Emilia também. Emilia, minha filha. E acrescentou, vale também para você, isto é, para mim. Mudar constantemente, esta é a lei do TAO, a lei da vida. Mudar, amadurecer, superar a si mesmos para si e para poder ajudar outros.
A Marina estava confusa, perdida num mundo que não entendia. Advogada de formação, acostumada a raciocinar, com a perda da memória, seu mundo desmoronava, ela estava com medo e se agarrava a quem a aceitava, principalmente a ele que a entendia mais do que eu e a Vaví outra moradora que tomava o café conosco e que se esforçava a ajudá-la com afeto, mas procurando forçá-la a usar aquele raciocínio que ela estava perdendo. Essa perda progressiva da memória a assustava. Com menos insistência eu também procurava convencê-la a mudar seu comportamento, o que não lhe era possível, pelo menos não nos termos em que nós desejávamos.
Geraldo ao contrário escutava-a, deixava-a falar. Procurava apenas entender. Havia notado que ela era médium e lhe dera um livro sobre espiritismo e mediunidade. Um livro que ela conseguiu ler e reler várias vezes, até aprender e se apoderar do assunto e encontrar algo que a ajudou a superar o período difícil de transição até a perda completa da memória.
Marina, apesar da doença, é um espírito puro e amoroso. Quando não lembrava quase mais nada, ainda sabia ter gestos e palavras: um aperto de mão, um sorriso cúmplice, para ajudar quem estava perto dela. Gostava de animais e de plantas e cuidava deles.
Depois, de um momento para outro, sem permitir-lhe de se despedir dos amigos, os filhos a levaram embora de aqui. A última lembrança que tenho dela foi numa sessão da Capelania com o Pastor Nino, quando ela tomou a minha mão acariciando-a, enquanto cantávamos, como se adivinhasse minhas mágoas.
Geraldo era uma mente aberta, o que contava para ele era o sentimento de amor, de solidariedade, a ajuda que podia dar aos outros. Mesmo que isso para a esposa fosse motivo de ciúme.
Mas agora que ele faleceu, creio que a esposa entende. Ela também está perdendo a memória, mas não a afetividade. Quando me vê, ainda hoje, depois de tanto tempo, sorri e me abraça, talvez lembrando quando eu falava com ela dando-lhe toda a atenção e fazendo de conta que não via o Geraldo próximo de nós.
Sorte dela que tem perto o afeto da filha. E através da filha vivencia outro tipo de amor e solidariedade.
Há tantas pessoas aqui a quem estou ligada afetivamente, às vezes sem falarmos muito, sentimos nos próximas e amigas. A Anneliese por exemplo que tem um problema de visão e teve de se submeter a uma série de microcirurgias, dolorosas, que a deixam quase cega por alguns dias com o medo de ficar cega de vez. Desamparada.
Ela não fala muito de si, entretanto, ao longo do tempo, algo sempre aparece no discurso. Assim soube que Anneliese é austríaca, depois um intervalo do qual não me falou, veio ao Brasil e se casou com um alemão – sob medida para ela, ela diz -, e conta que junto viajaram muito, mundo afora. Américas, Europa, Extremo Oriente.
Só muito recentemente disse algo mais e contou-me a sua experiência de menina sozinha, amenizada por sonhos, fantasias e jogos mentais, enquanto a mãe trabalhava fora.
Isso lembrou-me minha irmã que ainda hoje fala da guerra como de uma brincadeira, pois meu pai brincava com ela menininha de cinco ou seis anos para fazê-la acreditar que o estrondo das bombas e o sibilo dos aviões não era realidade, mas apenas brincadeira, para assustar as pessoas desavisadas, como a minha madrasta que sem olhar para nós chorava e gritava.
Percebe-se na fala de Anneliese uma cultura vivida através de experiências diretas e variadas e uma sensibilidade ao que é belo. Sem nunca se vangloriar. Nunca querer aparecer.
Agora que eu outra vez não estou muito bem, Anneliese tem comigo atitudes afetivas e protetoras que me emocionam, porque eu também lhe quero bem, também gostaria de protegê-la.
Infelizmente ela tem algo mais que a incomoda e torna difícil ajudá-la, até por que não é simples para eu entender. Ela se sente desamparada, tem sempre mais medo de perseguições reais ou imaginárias e eu não sei como ajudá-la.
Outra ligação afetiva tenho com a Maria, que até alguns meses atrás morava neste mesmo corredor do Palle onde eu moro, bem mais jovem do que eu, não sei se chega aos 69 anos. Maria ainda tem certa força e energia, gosta de caminhadas e de exercícios, mas tem diabete o que a levou a um AVC, e a muitos outros problemas mais ou menos colaterais, alergias, rinite, talvez sinusite, sinais de um sistema imunitário enfraquecido.
Maria é uma pessoa positiva, que reage aos problemas, procura ver o lado bom e alegre da vida, e ajuda os outros com o evidente prazer de fazê-lo, sem distinção entre moradores ou cuidadoras, de pessoas ainda em si ou já esquecidas de si mesmas. Nestas ela sente a afetividade que responde ao seu carinho o que lhe diz que está no caminho certo.
E não só isso. Ela gosta de passeios, de reuniões, de música alegre e de festas. Aqui no SBA aprendeu a cantar e a dançar sem se preocupar se o faz bem ou menos bem. É fazendo que se apreende. Aqui começou a ir a palestras, a concertos e a exposições de arte. Está maturando, como diz Daniela, a psicóloga.
De manhã, na hora do café, o sorriso de Maria e a sua atitude nos alegrava e preparava a enfrentar o dia. Para ela tudo tem seu lado bom se sabemos descobrir como encontrá-lo. É um ótimo ensinamento. Todos sentimos falta dela. Agora ela mudou-se, só vem para fazer companhia à Vavi que precisa de seu afeto e das suas brincadeiras.
E tem os homens, aqui neste corredor do Palle são quatro. O seu Francisco que não fala muito, mas sabe encontrar palavras para se aproximar com compreensão e carinho de quem está sofrendo. Lembro de quando o encontrei no quarto do hospital onde estava a Vavi e ele a consolava chamando-a de filha e abraçando-a carinhosamente. Uma cuidadora dele, Flávia, é particularmente inteligente e sensível. Participa com ele das reuniões do maturar e comenta depois, quando estamos a só, demonstrando uma compreensão superior àquela de muitas moradoras.
Eu também agora tenho duas cuidadoras que me ajudam em todos os cuidados da roupa e da casa e quando não consigo sair também vão buscar minha comida. Elas se revezam um dia uma e o dia seguinte outra e diria que são complementares. Uma é toda beleza e cuidados pessoais, e é contente quando lhe peço de me livrar do horror dos pelos supérfluos. Se eu deixasse, ela até me maquiaria. Antes de sair fica se olhando e maquiando na frente do espelho e sempre esquece algo mais importante. Ela é carinhosa se bem que entendeu que eu não gosto muito de beijos e abraços. A outra tem uma boa cabeça e se interessa por tudo, em particular pela história dos afrodescendentes pois ela é de cor e se orgulha disso. Raciocina, lembra, aprende com facilidade. Sabe se organizar e ajuda no que é importante.
Entre os homens deste corredor tem o Professor, seu António, chamado assim para distingui-lo de outro António, o Lima que morava aqui e agora mudou.
O Professor tem um problema de coluna, e nos últimos tempos antes de eu ser internada no hospital lembro que caminhava com a ajuda de um andador, agora usa cadeira de rodas, mas nesses poucos dias que estamos aqui – os dois voltamos do hospital no mesmo dia -, já está melhorando e voltou a usar o andador. Antes a Maria o acompanhava ao restaurante e o ajudava com a bandeja. Agora ele não desce e almoça no quarto.
Foi Professor de filosofia na PUC e ainda está escrevendo, ou pesquisando, sei disso porque uma vez precisou da ajuda de um técnico para arrumar o computador e eu aconselhei-o a ligar para o rapaz que me ajuda a mim. Mas fora isso não sei muito dele. Nos cumprimentamos, sim, todos os dias, mas falamos um pouco mais somente uma vez, num momento de abertura dele o que não lhe deve ser habitual.
Num edifício próximo ao Palle, separado apenas por um pequeno espaço aberto, mora Giorgio, engenheiro, Professor Titular da USP, aposentado cedo, para dedicar se a estudos de humanidades, história e sociologia, e a escrever livros de divulgação em que reúne seus conhecimentos matemáticos, científicos e humanísticos para um público razoavelmente culto. É o único que está completamente bem, com independência total, pelo que eu posso avaliar.
Arrumou a biblioteca e espera ter um ajudante para poder terminar de catalogar livros e revistas. Por enquanto encontrou algumas raridades interessantes para mim, por exemplo uma edição ilustrada por Doré do Inferno de Dante em italiano. E outro livro, em formato grande, sobre a Toscana.
Tem um agradável senso de humor, gosta de brincadeiras, é levemente gozador. O que não quer dizer que não queira ajudar quando lhe é possível. Procura, sim, ajudar quem está em dificuldade, mas não esconde o receio que com o avançar dos anos ele também possa vir a ter limitações graves. Então evita o contato com os mais problemáticos, e só vai ao restaurante quando a maioria dos cadeirantes já saiu.
No SBA parece-me que os homens tenham mais problemas ou não consigam reagir com a mesma força das mulheres. Muitos são cadeirantes, na maioria deles se percebem problemas de memória, entendimento, falta de autonomia. As exceções são raras, o Gandi, o Ruy que moram perto do Alberto e às vezes os vi conversando com ele, lúcidos e brincalhões, conversam agradavelmente, mas como todos nós, também estão envelhecendo um pouco a cada dia e depois de um período bastante longo, como foi o do meu internamento, isso se percebe.
Interessante parece ser Mauro, um japonês que raramente fala, mas quando o faz nas reuniões com a Daniela, por exemplo, é para dizer algo que todos apreciamos. É difícil para mim ter uma conversa demorada com ele. Mas sempre nos cumprimentamos ao encontrarmos, discretamente, com poucas palavras e um sorriso.
É nos bailes que a falta de homens aparece evidente, para formar os pares – algumas mulheres procuram os poucos que dançam e às vezes não querem deixá-los. O mais procurado é Alexandre, um rapaz bonito, Gerente do Atendimento, que quer agradar todas as senhoras e se esforça para se desvincular das mais insistentes com efeitos cômicos que fazem sorrir todo mundo
Voltando ao sério, as mulheres frequentemente conseguem se manter ativas e conscientes até uma idade mais avançada.
Aqui no Palle já morou Eugênia que faleceu aos 97 anos por uma queda, e até o fim conversava amavelmente comigo. E ainda moram duas senhoras com mais de noventa anos, a Erna e a Elfriede. As duas são alemãs. A Erna, minha vizinha, tem noventa e três anos e quando cheguei, faz dois anos, descia a biblioteca – foi ela a primeira a mostrar-me onde estava a biblioteca e as revistas que, a seu ver, eu poderia ler – e todos os dias cuidava do jardim diante das nossas janelas, regando as plantas com a mangueira, o que os médicos lhe haviam proibido.
Às vezes eu ficava olhando-a pela janela. Sentindo meu olhar, ela se virava, eu só dizia – dona Erna! – e ela, percebendo a desaprovação, ria divertida e recolocava a mangueira no gancho.
Depois caiu, quebrou o braço e custou a se recuperar. Teve de aceitar uma cuidadora, aliás duas que se revezam e que ela mal tolera.
Parece dura, mas se a gente a aceita e procura ajudá-la apenas um pouquinho, toda sua capacidade de ternura aparece. Assim foi comigo quando conversando com o médico que tínhamos as duas, procurei explicar que os desencontros com a filha, que a filha relatava para justificar sua ausência, não necessariamente dependem da Erna. E mesmo que dependessem e não tivessem justificações, agora Erna é a mais fraca, a que mais precisa de ajuda e de carinho.
E a ajuda chegou, não sei como, mas deve ter chegado. E a Erna veio no meu quarto me agradecer e me abraçar.
Agora nos abraçamos sorrindo sempre que nos encontramos.
Elfriede tem noventa e oito anos, mora sozinha, só tem uma ajuda de manhã para tomar banho e arrumar quarto e banheiro. Sempre bem vestida e elegante. tem um jeito alegre e brincalhão, todos gostam dela, ela cumprimenta a todos, com todos brinca sorrindo. Deve ter sido muito bonita e ainda tem um corpo ereto e esguio. Uma vez entrou no meu apartamento e se encantou com o espelho que é grande e onde se pode ver a pessoa inteira.
Hoje, porém, talvez com receio da reação da cuidadora, muito mais jovem, ficou olhando o espelho e a cuidadora que se penteava. Disse que era bonito, mas não foi até lá.
As duas, Erna e Elfriede, são alemãs e como não são as únicas alemãs deste Residencial, pude observar a caraterística comum de todas: aquelas que chegam à velhice tem força e garra. Qualidades desenvolvidas, sem dúvida, ao longo de vidas e experiências não fáceis.
Numa das casinhas, na descida, perto de onde morava Anneliese, mora a da. Úrsula, outra figura notável.
Úrsula ainda dirige seu carro, mas no Residencial desloca-se de andador. Um modo para se sentir segura sem esforços inúteis e cansativos. Foi ela quem me apresentou o rapaz que me ajuda com o computador.
Aparenta ter um jeito um pouco rígido de alemã mesmo – como muitos imaginam os alemães – na realidade ela se interessa pelos outros e, quando pode, ajuda. Vi-a uma vez com Anneliese, acompanhando-a até a casinha dela, com medo que tropeçasse nas pedras.
Comigo também, ela se aproxima mais do que eu sou capaz de fazer. Um dia fui à casa dela e falamos demoradamente. Foi uma surpresa para mim descobrir nela uma sensibilidade incomum, uma abertura mental sem os limites tão frequentes nas mulheres sobre comportamentos femininos mais ou menos corretos e aceitos pela maioria.
Tudo pode ser aceito se as circunstâncias o justificam. Tudo, até a prostituição, quando há fome e necessidade.
Ela ajudou-me a entender a minha madrasta e o fato de ela nunca ter agradecido a ajuda que eu, menina de pouco mais de treze anos, lhe dei durante a guerra, levando cada dia comida para ela na prisão onde ficou internada durante um mês antes que a levassem para Auschwitz.
Para mim entregar todos os dias o recipiente com a comida fora uma experiência marcante. As mulheres que estavam na fila comigo desabafavam suas mágoas contando os horrores de torturas que seus parentes, pais, maridos, irmãos, tinham sofrido e os projetos ferozes de vingança delas quando fosse terminada a guerra. Eu via na imaginação aquelas cenas de violência sem limites e ficava com medo, apavorada.
Mas a minha madrasta – fez-me notar a Úrsula – dentro da prisão não sabia da minha ajuda, só conhecia a realidade assustadora que ela própria vivia, na espera da deportação.
Com a Úrsula apreendi a refletir nos outros antes de me sentir incompreendida, e em primeiro lugar a ter mais compaixão. É claro que desde aqueles tempos passaram muitos anos, eu não sou mais a menina assustada daqueles momentos de guerra. Mas a mágoa não tinha passado e de vez em quando ressurgia sem eu perceber, até esta conversa com a Ursula.
Depois daquela visita, nos encontramos várias vezes, conversar com ela é sempre agradável para mim, sempre há algo novo, algo interessante.
Ela critica a organização e até mesmo a cozinha da SBA e não se pode discordar dela completamente. Estou de acordo que muitas coisas poderiam ser melhoradas na organização, em primeiro lugar pode-se sempre usar um pouco mais de respeito pelos outros, refiro-me ao modo como foram despedidos alguns médicos sem nenhum aviso ou explicação.
A alimentação é produção em série e deve se manter algumas horas antes de ser servida a todo mundo. Se o cozinheiro não é experiente, é fácil que a carne fique um pouco ressecada, a massa colada, o molho seco. Os temperos são industrializados… o contrário do que nos ensinam nas aulas do Maturar! Não deve ser fácil resolver o problema.
Entre as moradoras, não posso esquecer a Katarina, uma croata que pinta desde panos de pratos a quadrinhos com flores, para vende-los e continuar comprando cores, telas e tecidos para pintar. Não pretendem ser obras de arte. Mas Katarina pintou também alguns bonitos quadros que tem para si sobre sua chegada ao Brasil nos quais se percebe uma sensibilidade mais refinada e a capacidade de ultrapassar a simples realidade para chegar a expressar o pensamento.
Foi ela a se apresentar quando cheguei nesse Residencial, faz dois anos, convidando-me para conhecer sua residência.
Quando lhe contei que a minha família paterna havia sido radicada em Zara, uma pequena cidade da costa croata, mas que já fora colônia veneziana, parte do império austríaco e do reino da Itália antes de ser destruída totalmente nos bombardeios em 1943 e em seguida evacuada dos moradores que ali se encontravam, ela ficou interessada.
Contei-lhe também que a minha família possuía vinhedos e plantações de oliveiras no interior daquelas terras. Tudo perdido com a guerra.
Então ela me contou algo de si, das suas experiências na guerra, da perda dos bens, dos sofrimentos pelos quais ainda de vez em quando, ao caminhar, sente dores nas costas. Agora a Katarina de repente envelheceu, tem uma cuidadora que toma conta dela com autoridade. Não é mais a mesma. Tristeza.
Da. Helena é outra amiga de quem gosto, que me procurou enquanto estava no hospital e foi a primeira a me dar boas-vindas quando voltei. Nós falamos muitas vezes durante o almoço, ela me conta do filho dela, transferido pela firma onde trabalha do outro lado do mundo, na África do Sul, e das dificuldades de encontrar o horário para se comunicar com ele. Eu digo que até mesmo com minha filha que mora em Los Angeles, com apenas seis horas ou quatro de diferença, é muito difícil encontrar o momento certo para falar.
Helena é uma pessoa aberta e interessada ao que acontece ao seu redor. Precisa de cadeira de rodas, mas participa de muitas atividades, escuta os outros, dá sua opinião sempre com tranquilidade e moderação.
Com da. Jaqueline também gosto de falar. Ela é suíça e nunca apreendeu bem o português, mas com paciência a gente se entende e dá para perceber o quanto ela gosta de poder falar e de ter alguém que a escute. Agora que voltei do hospital, Jaqueline parece-me ser mais retraída, mais incapaz de comunicar, mais magra e doente, raramente a vejo tomar sol junto com as outras moradoras, quase não sorri.
Mas indo perto dela, falando-lhe baixinho e devagar, ela me responde com o sorriso de sempre.
Outro dia disse algo que me deixou sem palavras. Falou-me dos lindos lagos de sua terra e dos reflexos da paisagem nas águas. Uma imagem lampejante que apareceu um instante e desapareceu? Um relâmpago de memória que me lembrou as imagens captadas por Don De Lillo – um conhecido escritor americano – na casa de repouso onde a mãe dele estava internada com Alzheimer e relatadas num artigo que li tempo atrás. Quem sabe. Vamos ver se essas lindas recordações se repetem.
Voltando ao pequeno mundo do Palle e aos seus moradores, tem a Vavi que antes tomava o café com a gente, beijando todos, distribuindo doces, mas depois passou mal e foi para o hospital durante dois meses, mais um período no Acácia, a ala hospitalar do SBA. Agora, de volta ao seu apartamento, precisa de cuidadoras e de ajuda. Talvez isso seja para ela o motivo que a leva a fechar-se no seu pequeno mundo.
A Maria, eu e a Maria do Carmo lhe queremos bem e procuramos animá-la. As vezes ela sai, mas a gente percebe que o faz para agradar, e às vezes acaba saindo antes do fim da sessão ou do entretenimento, alegando cansaço ou, em outros casos, fica sem escutar o que se fala perto dela e para ela.
A Maria do Carmo é outra moradora do Palle, amiga de todas nós. É uma mulher carinhosa e quer ajudar. Uma das vezes que eu tive de ficar no Acácia, cheia e remédios, fui pouco gentil com ela que vinha me visitar todo dia. Mas ela não se ressentiu e continuou ajudando. Agora a entendi e tenho para ela afeto e amizade.
No quarto próximo ao da Maria do Carmo, desde um mês, mora o seu Osmar que precisa de muita ajuda e com quem ainda não consegui conversar. Parece fechado em seu mundo.
Outra minha vizinha, Carmen Lúcia, também me deu boas vindas com um lindo desenho quando voltei do hospital. Ela usa cadeira de rodas por um AVC. É uma mulher carinhosa, sempre alegre, canta e brinca. Sentava perto de mim na hora do café, me cumprimentava com um sorriso, um aperto de mão, um beijo. Ficar perto dela é uma alegria. Muitas vezes almoçávamos juntas, antes de ela voltar para o hospital onde permaneceu um mês. Agora está no Acácia e melhora a cada dia, mas não sei quando poderá dispensar os cuidados intensivos que ela recebe ali e voltar para casa outra vez.
Escritora e pesquisadora, ela me deu um de seus livros que li descobrindo sua beleza e complexidade. Espero tanto revê-la aqui no Palle, no quarto ao lado do meu, cantando “Bella ciao”, a música de que ela gosta.
E tem dona Ersilia com quem nunca falei muito, apesar dos cumprimentos e dos abraços carinhosos. Ela morou por um período aqui, depois foi para o Hellner e agora está no Acacia. A cuidadora dela fez vários trabalhos para mim, uma touca para o frio do inverno, um colete para o verão, e tantos outros pequenos objetos. Tudo enquanto cuidava dela.
Ersilia tem uma tia. Irene, que mais parece ser prima dela, fiquei surpresa quando me disse ter 89 anos, pois acreditava que fosse muito mais moça. É uma daquelas mulheres saudáveis e bonitas como todas queríamos ser. Irene cada dia almoça com ela e lhe faz companhia com dedicação.
Com a Irene as vezes íamos ao Extra, no mesmo carro. É assim que tive ocasião de conhecê-la mais de perto e de apreciar seu jeito de se aproximar das pessoas com delicadeza e simpatia.
Não faltam pessoas mais problemáticas. A dona Matilde com síndrome do pânico, chora e chama o médico para ajudá-la, as vezes gritando, apesar dos remédios. Mas é carinhosa, se agarra à cuidadora com medo de ficar sozinha, e também sorri para mim agora que percebeu minha compreensão e carinho.
Tem a dona Olga, que mora ao lado do Giorgio, mas ela quase só fala alemão e para mim é impossível comunicar com ela.
Alguns meses atrás chegou uma japonesa, Inês, que tinha a mãe no Acácia. Quando a mãe de improviso faleceu, Inês mudou-se para uma das casinhas perto de onde morava a Anneliese e mora a Wal. Inês é ainda jovem, ativa e simpática. Todo dia nos abraçávamos com verdadeiro carinho. Ela continua lembrando de nós, por um período vinha tomar conosco o café da manhã, depois desistiu, mas no dia das crianças trouxe chocolate para todos nós. A sua tartaruga que ficou por um tempo num cercado diante da minha janela, agora foi para a nova casinha dela.
No Weissflog, moram mais pessoas além da Jaqueline de quem já falei. Ali os quartos são muito pequenos, mas se abrem de um lado sobre jardins cheios de flores em baixo, e do outro lado sobre um bonito pátio, circundado por arcos e florido no meio. No corredor, é possível passear protegidos da chuva e do sol. Um quiosque central debaixo das árvores cria um espaço sombreado muito agradável nos dias de sol.
Entre os moradores há um juiz que quase não fala com pessoas que não conhece, mas o cuidador diz que sabe jogar baralho e outros jogos e até mesmo xadrez.
Tem a Miriam que pela sua pequena estatura todos chamam de Mirina e brincam com ela como se fosse uma bonequinha. Antes ela se ressentia dessas atitudes e me olhava com gratidão por eu tratá-la com amizade e respeito. Agora, desde quando voltei do hospital, parece-me envelhecida, esquecida, não reage mais, quase não sai no pátio para tomar sol, só desce para almoçar no restaurante com uma cuidadora que a ajuda.
Outra moradora é dona Luisa com quem tinha certa amizade e falávamos de muitas coisas. Às vezes pelas diferenças de opinião chegávamos quase a brigar, mas numa base de brincadeira e de amizade.
Até que meu internamento no hospital nos afastou de vez e agora apenas nos cumprimentamos no restaurante. Mas ela é uma pessoa com personalidade marcante, com ideias próprias, muito segura de si. Um filho dela mora na Suíça e ela tem duas netinhas encantadoras.
Maria José é tranquila, fala pouco mas parece ainda ter a cabeça funcionando bem. Uma vez, o ano passado fomos a Guarujá, sentadas uma ao lado da outra no ônibus e ela me contou algo de si. O que lembro é que ela é muito religiosa, quase uma freira e que gosta da natureza. Porém não tive muito contato com ela, só nos encontramos no carrinho que nos leva ao restaurante e nos traz de volta para casa e às vezes nas reuniões da Daniela e do Silvio. Mas ela lembra de mim e pede às cuidadoras se estou me recuperando.
Numa das casinhas na encosta moram dona Elzira com seu marido, seu Henrique. Antes de eu me afastar e ser internada, todos os dias, eles desciam de carrinho junto comigo. No restaurante ele sentava à mesa e ela ia buscar a comida e cuidava dele. Agora eles raramente descem. De vez em quando os vejo sentados num banco perto da casa deles tomando sol. Ela teve um problema aos olhos e por um período não conseguia enxergar. Agora parece estar melhor e, com ajuda de uma cuidadora, passeia na sombra, debaixo das arvores. Quem cuida dela agora é o marido.
Também a Wal, mora numa daquelas casinhas. Ela não quer muitas conversas, mas uma vez notei que tinha um distintivo da FMU – Faculdade de Medicina da USP – e lhe perguntei se era médica. Queria apenas iniciar um discurso, dizer que eu também havia trabalhado na USP. Mas ela preocupou-se pensando que quisesse pedir uma consulta e se apressou a dizer que não, que sempre havia trabalhado com pesquisa e não podia me ajudar com receitas nem conselhos. Desfeito o equívoco, conversamos e agora sempre nos cumprimentamos, porém sem muitas palavras porque ela tem um aparelho e daquele lado não consegue ouvir.
Embaixo no Hellner mora dona Karin, ela tem 90 anos, é uma mulher pequenina, mas cheia de vida e de alegria. No baile de carnaval fazia questão de empurrar todos para dança, inclusive quem estava em cadeira de rodas. Uma senhora se levantou da cadeira e com sua ajuda provou alguns passos ao ritmo da música.
A Karin veio buscar a mim também e me levou para a roda de dança não sem tentar de dançar comigo, só que, sendo eu mais alta do que ela, ao voltear debaixo do braço dela, quase perdi o equilíbrio e ela preferiu me deixar entre duas dançarinas mais altas e robustas. A minha prova de dança mesmo assim, protegida, foi curta e eu logo voltei ao meu lugar.
Ela, no entanto, procurava sempre novos dançarinos e dançarinas. Convidou para dançar o Alberto que, ao contrário de mim, resistiu ao convite. Talvez porque viu a minha atuação e não quis enfrentar as mesmas dificuldades.
Numa das reuniões da Daniela, sobre a fé, Karin deu um depoimento muito bonito sobre o seu modo de viver a fé em Deus, falando com Ele todo dia, como se fosse um pai ou um irmão.
Conheci também a dona Barbara, uma mulher bonita com um sorriso comunicativo. Quando me disseram que tinha cem anos, fiquei sem palavras. Em seguida a vi novamente no restaurante. Estava em cadeira de rodas, mas comia sozinha, sem dificuldade nenhuma. Parece sadia, mas talvez pelos cuidados que a idade requer, mora no Acácia.
Todo dia encontro a Gerda. Todo dia nos cumprimentamos. Ela pergunta de mim, da minha recuperação e responde às minhas perguntas.
A família de improviso levou-a para Florianópolis. Mas mesmo de longe o pensamento dela continua a me intrigar. Continuo a não entender o que ela tem. É mesmo o mal de Alzheimer?
Entendo que esta doença pode ser muitas coisas diferentes que ao mesmo tempo tem algo comum, que é o esquecimento; esquecimento de palavras mais do que de pensamentos. Parece ser um problema de comunicação. Mas e o mundo interior? Há coisas que se querem dizer sem conseguir? Em todo caso não parece ser apenas um problema afetivo. E parece apresentar possibilidades de superação. Superação faiscante como nas imagens captadas por Don De Lillo, lampejos quase poéticos que lembram fragmentos de antigos poemas. Como foi o caso da Jaqueline. Mais raro em conversas demoradas como no caso da Gerda.
O tempo passa, e retomando esse texto após alguns meses percebo o quanto as pessoas mudaram.
A cada dia há novos encontros, novas amizades, também novos funcionários, cuidadoras, médicos. Todos querem ajudar e, sem esquecer os que nos deixaram e a quem continuamos devendo gratidão e amizade, devemos conhecer eles também e nos adaptar às mudanças que vem com o passar do tempo.
Mudaram os amigos de outrora, alguns adoeceram, mas com força de vontade e coragem, com perspectivas para o futuro, conseguiram se recuperar, ou estão se recuperando. Outros, mais fracos ou mais doentes, sentem-se velhos, incapazes, e não conseguem sair do buraco. Pensam que a vida terminou, olham ao passado. Vivem de saudades.
Olhando em perspectiva, dou me conta que as experiências se repetem, mais ou menos iguais, se bem que com outros nomes e não creio que acrescentar outros relatos seria útil a fim de dar um quadro deste Residencial e do que ele oferece para ajudar-nos nesta fase difícil do envelhecer, quando sabemos que o fim se aproxima e nós preparamos para ele, mas sem parar com o pensamento nessa realidade inevitável.
Resta o desejo de agradecer todos aqueles que nos ajudaram e ainda nos ajudam criando continuas oportunidades de refletir e, apesar da idade, de continuar com prazer e alegria a amadurecer e crescer em cultura, espiritualidade, afeto e solidariedade para com nossos vizinhos e todos que nos cercam, o que é diferente dos afetos profundos que nos ligam aos filhos e à família, mas é importante em nossa vida.
Acabo de ler sua cronica de vivencia , gostei e aprendi muito.
Ha um ano viuva somente apos o falecimento de meu marido com quem vivi 70 anos ,me dei conta da idade avançada que tenho por que 13 anos de diferença entre nos me faziam sentir mais jovem
Enfim gostei do modo como voce descreveu a vida e sobretudo as escolhas que teve que fazer e como se saiu bem ao eleger o modo e o lugar onde viveria.
Obrigada por compartir oa sua vida.