Em 1983 trabalhava em um Banco na área de Engenharia como Gerente cujos escritórios ficavam no centro de São Paulo, quando foi contratado um novo Gerente.
Eu não o conhecia e nunca havia ouvido falar dele, mas foi gozado quando descobrimos que éramos vizinhos, que nossas mulheres trabalhavam juntas numa escola, eram amigas, que de meu filho mais velho era amigo da filha mais velha dele e a caçula dele idem da minha.
O mundo é realmente muito pequeno!
Pouco após esta descoberta passamos a fazer rodízio umas duas a três vezes por semana não só para economizar combustível, mas também pela companhia, pois era um percurso de cerca de 30 km. No ano seguinte fui promovido a Diretor e passei a ter direito a um carro e ele passou a ser meu carona. Em 1985 saímos do Banco, reduzimos os nossos encontros passando a nos ver com menos frequência, mas nunca deixamos de nos ver.
Separei-me no final de 1989.
Em Março de 1990, estava num supermercado e nos encontramos. Creio que não nos víamos há uns seis meses.
Ele muito formal, delicadamente disse-me que havia sabido de minha separação e que havia ficado muito chateado e me perguntou como poderia me ajudar. Agradeci-lhe e mudando de assunto perguntei como estavam todos de sua casa e ele me contou que sua esposa havia descoberto um câncer há uns meses.
Fiquei estarrecido, enquanto que eu tinha apenas que aceitar as mudanças que teria em minha vida em função da separação, ele tinha uma tarefa muito maior que a minha, mas sua postura não lhe permitia externar o que estava realmente sentindo.
Chegando em casa liguei para a minha ex lhe perguntando se ela tinha sabia da doença de sua amiga e ela disse-me que não. Pedi-lhe me informasse caso tivesse alguma novidade a respeito. Nas diversas vezes em que nos encontramos, ela me disse que não havia escutado nada a respeito do assunto.
Uns seis meses daquele encontro no supermercado e não aguentando a falta de notícias resolvi ir visitar a família. Fui lá num sábado e passei tarde com eles. Na saída ele me acompanhou até o carro onde eu lhe disse que tinha achado que ela estava muito bem e ele muito rapidamente falou que não era bem assim.
Alguns dias depois ele me ligou e contou-me que infelizmente o caso havia evoluído e que o quadro havia piorado e que eles estavam na busca de
alternativas para resolver o problema.
Desta data em diante passei a ligar para ele, periodicamente, a cada dois ou três meses até para não pressiona-lo e infelizmente as notícias nunca eram boas.
O tempo foi passando e num sábado em Fevereiro, cerca de um ano após daquela minha primeira visita, resolvi visita-los.
Toquei a campainha e ela abrindo a porta e disse:
– “Bics é você, mas que saudades! Vamos entrar!”
Entramos e fomos para a cozinha para fazer um café. Ela me contou que seu marido havia ido para São Paulo pegar as filhas que estavam voltando de um acampamento de férias, acho que o era o Paiol Grade e fomos para a sala tomar o café.
Não posso deixar de comentar que ela estava usando um lenço porque a radioterapia havia afetado seus cabelos, mas o que me impressionou foi a tranquilidade que estava enfrentado aquela terrível situação, com brilho nos olhos e sempre sorrindo.
Após sentarmos, começamos a conversar e inevitavelmente acabamos falando da doença e sobre a qual não fez nenhuma queixa nem drama.
Num certo momento tivemos um diálogo cujas palavras exatas realmente eu não me lembro, mesmo porque isto ocorreu há mais de 25 anos e na verdade não tem a menor importância as palavras que foram ditas, mas sim a mensagem que recebi e que me impactou:
– “me desculpe, mas estou espantado com sua calma e tranquilidade nesta hora tão difícil. Como você está conseguindo administrar isto?”
– “com muita calma, pois a situação é inevitável e caso eu perca o controle não irei ajudar em nada, pelo contrário vai piorar, pois eles vão se sentir inseguros, não poderão ajudar em nada e eu terei mais trabalho ainda para mantê-los tranquilos.”
É um raciocínio muito lógico, mas convenhamos que deve ser muito difícil de manter a calma numa situação como esta. A conversa teve algumas guinadas e voltou com:
– “e a religião a tem ajudado nesta sua postura?”
– “sim, tem me ajudado. Sou cristã, não pensei em espiritismo nem outra saída similar, mas neste tempo que me resta quero deixar eles preparados para a minha falta e única alteração que fiz na minha vida é que deixei de ser a Gerente Geral do Universo”
– “mas o que é isto?”
– “Bics, você sabe quando você vem de São Paulo para cá e na estrada tem um carro na sua frente e você buzina ele teima em não sair da frente e permitir a sua passagem?”
– “…..sim, sei”
– “Bics, ele não sai da sua frente porque ele não sabe que está na frente do Gerente Geral do Universo!”
– “meu Deus de onde você tirou isto? Você está absolutamente correta e é um tapa na cara”
– “este tapa também vale para mim que sempre que fui uma Gerente, mas com o pouco tempo que tenho pedi a minha demissão do cargo para cuidar dos meus e na situação em que me encontro não posso me dar ao luxo de me preocupar em nada mais que não sejam eles!”
O importante da conversa está neste resumo acima.
Logo após chegou o meu amigo com as filhas e rapidamente fui embora para deixar a família reunida.
Poucos meses depois ela faleceu.
Não posso deixar de dizer que ao sair da casa deles chorei chocado pelo que havia escutado dela, uma aula de uma mulher jovem, bonita, culta enfrentando de frente o drama de sua morte e nesta hora a sua maior preocupação não era com ela, mas sim preparar sua família para a sua ausência e jamais vou esquecer a sua altivez, que com humildade e grandeza estava aceitando o seu destino inevitável e resumo isto em uma única palavra: DIGNIDADE.
Em algumas ocasiões em que citei este diálogo e este tal Gerente, sempre senti que as pessoas se sentiram incomodadas, não por mim que sou um mero repetidor do que ouvi, mas por esta admirável mulher que mesmo não estando aqui entre nós ainda causa impacto.
Sei que fui um privilegiado em tê-la conhecido e espero ter aprendido algo com ela quando a minha hora chegar.
José Carlos Bicudo
Engenheiro – 69 anos
Colaborador e colunista da TIC.
É apaixonado por teatro e cozinha.
Tem como hobby escrever textos sobre o cotidiano e pequenos contos.
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